A questão da nacionalidade dos descendentes de judeus sefarditas portugueses
Acompanhei com muito interesse o debate que deu origem à Lei Orgânica nº 1/2013, de 29 de julho, que alterou o artº 6º da Lei da Nacionalidade Portuguesa, adicionando-lhe o nº 7, em que se determina que “O Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.o 1, aos descendentes de judeus sefarditas portugueses, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral”.
Em boa verdade, esta alteração legislativa parecia ser inútil, pois que o artº 6º,6 já determinava que “o Governo pode conceder a naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos indivíduos que, não sendo apátridas, tenham tido a nacionalidade portuguesa, aos que forem havidos como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência portuguesa e aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional.”[1]
Sempre entendi que os descendentes de judeus sefarditas portugueses – tal como enquadrados no debate da Lei Orgânica 1/2013, de 29 de julho e nos diversos documentos de suporte das propostas de lei se enquadravam no quadro dos “membros de comunidades de ascendência portuguesa” latu sensu.
Fui, na altura, convencido pelo discurso dos que então reconheciam a ineficácia de todos os procedimentos no quadro do artº 6º,6 e pela afirmação de a “homenagem à História” exigia que a mesma fosse reescrita e que as vítimas da Inquisição, porque foram as que mais sofreram lhe erguessem um edifício.
Cheguei, na época, a defender que tanto as pessoas a que se refere o artº 6º,6 como aquelas a que se refere o artº 6º,7 deveriam admitidas na comunidades portuguesa como “portugueses de origem”, na mesma linha da qualificação dos “cidadãos portuguezes“ do artº 18º do Código de Seabra.
Sugeri que se adicionasse uma alínea ao artº 1º da Lei da Nacionalidade Portuguesa, na qual se dispusesse que “são portugueses de origem os descendentes de judeus sefarditas portugueses que comprovem documentalmente essa qualidade”.
Tanto no modelo que foi adotado – e que é mau – como naquele que, do meu ponto de vista melhor se homenagearia a História, há um elemento essencial: a prova documental da descendência de judeu sefardita português.
A perseguição dos judeus a partir de 1492 não apagou a suas memórias, nem as memórias das suas famílias, que, na generalidade das situações foram preservadas ou pelas comunidades judaicas ou por outras comunidades, em que os descendentes dos perseguidos se integraram.
O sangue nos mártires e dos perseguidos deixou marcas na História que não são unívocas e não podem ser equivocas.
Vale isto para dizer que a interpretação da lei não deve ser discriminatória ao ponto de impedir, pela via processual, o acesso à nacionalidade portuguesa dos descendentes de judeus sefarditas portugueses que se tenham afastado, ao longo dos mais 500 anos que passaram, da tradição ou da integração numa comunidade sefardita de origem portuguesa.
Não há nenhum problema nem com o número dos requerentes nem com essa perversão cripto-fascista que consiste na pretensão da exigência de prova de uma ligação efetiva à comunidade nacional.
Recorda-se que esse conceito foi inventado, no tempo de Salazar, para suportar a perda da nacionalidade portuguesa, nos termos da Base XX, da Lei nº 2098, de 29 de julho, que dispunha o seguinte:
“Por deliberação do Conselho de Ministros, pode o Governo decretar a perda da nacionalidade (…) aos portugueses havidos como nacionais de outro Estado que, principalmente após a maioridade ou emancipação, se comportem, de facto, apenas como estrangeiros”.
A II República recuperou esse conceito no artº 9º da versão originária da Lei da Nacionalidade, que estabelecia que constituía fundamento de oposição á aquisição da nacionalidade portuguesa “a manifesta inexistência de qualquer ligação efetiva à comunidade nacional.”
A Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de abril, alterou o artº 6º da Lei da Nacionalidade, introduzindo-lhe um nº 6, com o seguinte conteúdo:
“O Governo pode conceder a naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos indivíduos que, não sendo apátridas, tenham tido a nacionalidade portuguesa, aos que forem havidos como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência portuguesa e aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional.”
A referência “aos que forem havidos como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência portuguesa” parecia ser destinada a reparar diversas barbaridades e abandonos, a começar pela perseguição aos judeus portugueses e aos seus descendentes.
Porém, a verdade é que esse normativo se transformou numa inutilidade, com exceção do reduzido número de casos de nacionalidade por favor concedida para retribuir favores ao Estado Português ou à comunidade nacional.
A Lei Orgânica nº 1/2013, de 29 de julho, não seria necessária se a versão anterior tivesse sido bem regulamentada.
Publicada uma disposição a um tempo repetitiva e de difícil interpretação chegou-se ao estado a que chegamos, porque o artº 6º,6 nunca funcionou.
Continua a não haver concessões de nacionalidade por naturalização com fundamento no disposto no artº 6º,6 e, ao invés, multiplicaram-se os pedidos com fundamento no artº 6º,7 apenas porque a apreciação dos processos é muito menos exigente.
Escrevi em 2015 um pequeno livro sobre a questão da aquisição da nacionalidade pelos descendentes dos judeus sefarditas portugueses e sou o autor do texto quer figura no site da sociedade de advogados de que sou sócio.
Como advogado, não tive a coragem de subscrever, até hoje, nenhum pedido de aquisição da nacionalidade por pessoas invocam a qualidade de descendentes de judeus portugueses, embora tenha acompanhado e conheça diversos processos.
A minha atitude nada tem a ver com o excesso de pedidos que algumas pessoas invocam ou com a falta de ligação há comunidade nacional por parte dos candidatos.
Entendo que as homenagens à História devem fazer-se com processos de verdade histórica; e a verdade histórica não passa por opiniões nem por declarações não demonstradas ou por registos ou por trabalho de especialistas.
Mais do que a questão jurídica, o que está em causa é uma questão histórica, que dever respeitar a verdade histórica.
A Genealogia é uma ciência; uma ciência auxiliar da história, que “estuda estudando a origem, a evolução e dispersão das famílias e respetivos sobrenomes ou apelidos.”
Tem autonomia científica desde os finais do século XVII.
As universidades portuguesas formam genealogistas e algumas têm mesmo serviços de genealogia.[2]
Mas, para além disso, há empresas especializadas que se dedicam aos estudos de genealogia e que produzem trabalhos excelentes.
O maior problema da maioria destas empresas reside no facto de não estarem dispostas a produzir documentos autenticados das suas investigações.
É preciso explicar em que consiste a autenticação de documentos.
Dispõe o artº 150º do Código do Notariado:
“Os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário.
2 – Apresentado o documento para fins de autenticação, o notário deve reduzir esta a termo”
Logo a seguir, diz o artº 151º do mesmo Código:
“1 – O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos:
a) A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade;
b) A ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que neste não estejam devidamente ressalvados.
2 – É aplicável à verificação da identidade das partes, bem como à intervenção de abonadores, intérpretes, peritos, leitores ou testemunhas, o disposto para os instrumentos públicos.”
Com todo o respeito por opinião diversa, a prova dos pressupostos estabelecidos no artº 7º,7 só deve poder fazer-se por documento autenticado, que demonstre tais elementos de forma inequívoca.
Vamos ver o que estipula o Regulamento da Nacionalidade.
Dispõe o artº 24º-A desse diploma:
“1 – O Governo pode conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos descendentes de judeus sefarditas, quando satisfaçam os seguintes requisitos:
a) Sejam maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;
b) Não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa.
c) Não constituam perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei.
2 – No requerimento a apresentar pelo interessado são indicadas e demonstradas as circunstâncias que determinam a tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, designadamente, apelidos de família, idioma familiar, descendência direta ou relação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da comunidade sefardita de origem portuguesa.
3 – O requerimento é instruído com os seguintes documentos, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º:
a) Certidão do registo de nascimento;
b) Certificados do registo criminal emitidos pelos serviços competentes portugueses, do país da naturalidade e da nacionalidade, bem como dos países onde tenha tido e tenha residência, os quais devem ser autenticados, quando emitidos por autoridades estrangeiras;
c) Certificado de comunidade judaica com estatuto de pessoa coletiva religiosa, radicada em Portugal, nos termos da lei, à data de entrada em vigor do presente artigo, que ateste a tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, materializada, designadamente, no apelido do requerente, no idioma familiar, na genealogia e na memória familiar.
4 – O certificado referido na alínea c) do número anterior deve conter o nome completo, a data de nascimento, a naturalidade, a filiação, a nacionalidade e a residência do requerente, bem como a indicação da descendência direta ou relação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da comunidade sefardita de origem portuguesa, acompanhado de todos os elementos de prova.
5 – Na falta do certificado referido na alínea c) do n.o 3, e para demonstração da descendência direta ou relação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da comunidade sefardita de origem portuguesa e tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, são admitidos os seguintes meios de prova:
a) Documento autenticado, emitido pela comunidade judaica a que o requerente pertença, que ateste o uso pelo mesmo de expressões em português em ritos judaicos ou, como língua falada por si no seio dessa comunidade, do ladino;
b) Registos documentais autenticados, tais como registos de sinagogas e cemitérios judaicos, bem como títulos de residência, títulos de propriedade, testamentos e outros comprovativos da ligação familiar do requerente, por via de descendência direta ou relação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da comunidade sefardita de origem portuguesa.
6 – Em caso de dúvida sobre a autenticidade do conteúdo dos documentos emitidos no estrangeiro, o membro do Governo responsável pela área da justiça pode solicitar, à comunidade judaica a que se refere a alínea c) do n.o 3, parecer sobre os meios de prova apresentados ao abrigo do disposto no número anterior.”
Esta norma é de interpretação muito difícil, atentas as contradições que importa.
É especialmente difícil a interpretação do nº 3, al. c).
Parece-me absolutamente inaceitável que qualquer associação peça ao “cliente” que apresente uma “declaração sob compromisso de honra” e que, com base em tal declaração produza um certificado suscetível de transformar o declarante (que nem sequer conhece a língua em se declarou) em nacional português.
A exigência da criptofascista ligação efetiva à comunidade nacional – é absolutamente inaceitável, como o era, por absurda, a pretendida exigência de uma “ligação ao território”, de que só agora se falou.
É tempo de acabar com esse conceito e essas ideias absurdas e discriminatórias de ligação à comunidade nacional ou ao território.
Não há nenhuma razão que justifique, em nenhuma circunstância, a apresentação de provas de ligação à comunidade nacional nem por parte dos netos de nacionais portugueses (artº 1º,1, al c) da Lei da Nacionalidade) nem por parte dos descendentes dos judeus sefarditas.
Nada justifica, em nenhumas circunstâncias que se exija a qualquer candidato à aquisição da nacionalidade portuguesa que faça provas de ligação efetiva à comunidade nacional, sem prejuízo de o Ministério Público pode propor ações de oposição, alegando e fazendo prova da inexistência de ligação à comunidade nacional.
Os únicos problemas que se suscitam no plano dos pedidos de aquisição da nacionalidade portuguesa pelos descendentes de judeus sefarditas residem, a meu ver, no da prova dessa qualidade, que deve ser melhorada, por via do recurso a estudos genealógicos sérios e independentes e, especialmente, à acreditação de pessoas e entidades para produzir relatórios genealógicos autenticados, para o que poderia/deveria recorrer-se aos departamentos de História das universidades portuguesas.
Não faz nenhum sentido que a prova da descendência de judeus sefarditas se reduza, praticamente, a declarações das associações religiosas judaicas – excluindo-se, por essa via, nomeadamente, as comunidades dos marranos portugueses espalhadas pelo Mundo.
Não vi, até hoje, nenhum estudo genealógico que mereça o mínimo crédito, mas acredito que eles possam existir.
O que me parece é que não pode aceitar-se que seja emitido um certificado de descendência na base das declarações, embora sob compromisso de honra, dos próprios interessados.
Por mais respeitáveis que sejam as associações judaicas, parece-me absolutamente insuficiente que um processo de aquisição de nacionalidade possa concluir-se com documentos do tipo dos que se anexam.
Proponho que prestemos homenagem a História com a Verdade.
Tenham a coragem de conferir aos descendentes dos judeus sefarditas portugueses o direito à nacionalidade portuguesa originária, nos mesmos termos em que a mesma é conferida aos netos de nacional português, acabando-se com as provas de ligação à comunidade nacional, mas exigindo-se prova documental inequívoca da qualidade de descendente de judeu sefardita português.
Só assim é possível reparar o erro histórico e permitir que os filhos dos judeus portugueses possam, eles próprios, requerer a nacionalidade portuguesa originária.
Lisboa, 5 de julho de 2020
Miguel Reis
[1] Refiro-me à numeração atual
[2] Só a título de exemplo vejam-se o Serviço de Genealogia da Universidade de Coimbra em https://www.uc.pt/auc/servicos/genealogia e o Serviço de Genealogia da Universidade do Minho http://www.genealog.uminho.pt/
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