Notas sobre a questão da nacionalidade
Ainda me repartia entre o jornalismo e a advocacia quando foi aprovada a Lei nº 37/81, de 3 de outubro.
Foi uma enorme viragem, por relação ao modelo da Lei nº 2098, de 29 de julho de 1959, que afirmava uma lógica intrínseca de jus soli, posta em causa, meia dúzia de anos antes pela descolonização.
Os retornados – assim eram chamados os que fugiram das ex-colónias – tinham sido portugueses, por força do Código de Seabra, de 1867, ou da Lei nº 2098, de 1959. Mas aqueles que não tivessem ascendente nascido no Continente ou nas Ilhas Adjacentes até ao terceiro grau, ou que não fossem descendentes de cidadão nascido no Estado da Índia, perdiam a nacionalidade portuguesa[1].
Ainda hoje me interrogo acerca das razões que levaram o legislador de 1975 a conferir tais privilégios aos descendentes dos nascidos no Estado da Índia, em pé de igualdade com os descendentes dos continentais e dos portugueses das Ilhas.
Interrogo-me também porque foram tão brutalmente marginalizados os Portugueses da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, de Angola e de Moçambique.[2]
Muitos desses retornados nem sequer se aperceberam que tinham passado a ser apátridas. E poucos foram os que, depois da entrada em vigor da nova lei, tomaram imediata consciência de que os seus filhos, mesmo que nascidos em Portugal, não eram portugueses.
A descolonização teve aspetos menos felizes…
Na versão originária da Lei da Nacionalidade, previa-se, na al. d) do artº 1º,1 que eram portugueses de origem “os indivíduos nascidos em território português quando não possuissem outra nacionalidade”.
Porém, na prática, era quase impossível obter esse estatuto para as crianças dos retornados que tivessem perdido a nacionalidade portuguesa e adquirido a nacionalidade dos novos países de expressão portuguesa.
Aliás, esse mesmo síndrome ainda hoje existe, de forma mais ou menos institucionalizada, relativamente aos filhos de nacionais brasileiros nascidos em território português, os quais não adquirem a nacionalidade brasileira, se não forem registados no consulado do Brasil. Mas se os progenitores os registarem no consulado brasileiro, não adquirem a nacionalidade portuguesa.
Em muitas situações, os progenitores optam por registar as crianças no registo civil português, recusando-se, como é seu direito, a registá-las no consulado brasileiro.
Porém, apesar de a lei ser clara e inequívoca, conferindo a esses cidadãos a nacionalidade portuguesa origináris, porque nasceram em território português e não têm outra nacionalidade, os serviços de registo oferecem as maiores dificuldades e jogam forte, de forma que consideramos ilegal, na apatridia dos mais resistentes.
Sem dúvida que a autoridades brasileiras adotam posição mais civilizada, relativamente aos filhos do portugueses nascidos no Brasil, que não forçam a que sejam registados nos consulados de Portugal, deixando essa decisão ao livre arbítrio dos pais.
Há “coisas” em que o Brasil respeita melhor os direitos humanos do que Portugal – e esta da nacionalidade de quem nasce no respetivo território e não tem outra nacionalidade é uma delas.
Na vigência da lei atual, Portugal denegou a atribuição da nacionalidade a dezenas de milhar de filhos de estrangeiros, nascidos em território português, forçando-os a inscrever-se nos consulados dos países da nacionalidade dos pais.
O Brasil nunca procedeu de forma tão bárbara.
[1] Cf. Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de junho, infra
[2] Sobre esta problemática ver MOURA RAMOS, Estudos de Direito Português da Nacionalidade, Coimbra Editora, pag. 63